segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Cinema Brasileiro

DUAS OU TRÊS COISAS SOBRE O CINEMA BRASILEIRO

Tatiana Monassa


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Em São Paulo, no mês de abril, quando a mostra “Clássicos e Raros do Nosso Cinema” foi inaugurada, o museu Estação Pinacoteca exibia “Andy Warhol – Mr. America”. Fazer a dobradinha da exposição e da sessão de Perfume de Gardênia, de Guilherme de Almeida Prado, me provocou inúmeros questionamentos. Quando uma exposição como aquela vem para o Brasil, não há quem não festeje. Um grande artista, belas obras, uma oportunidade imperdível.

O que ninguém parece entender, no entanto, é o verdadeiro sentido do trabalho em questão, aquilo que alçou Warhol ao panteão dos maiores da história da arte. Ponto número um: suas obras são totalmente conectadas à cultura dentro da qual foram produzidas; há uma ligação fundamental entre o substrato cultural do qual o artista se alimentava e os materiais e os temas utilizados por ele, um elo que permitia que seus trabalhos tanto fossem reflexos significantes do mundo ao seu redor quanto um produto acabado perfeitamente integrado a este mundo.

Se a lógica da sociedade americana encontra-se tão perfeitamente refletida em seus trabalhos é porque Warhol amava o seu país, amava a sociedade de consumo, amava as sopas Campbell, a Coca-Cola, o dinheiro e as vedetes. Suas obras nunca seriam tão verdadeiras e tão impactantes se tivessem sido realizadas sob a ótica do cinismo.


E é precisamente esta capacidade de articulação (e esse amor) que falta ao cinema brasileiro hoje. Nossos filmes são fruto de projetos formatados para se enquadrarem em leis; projetos que por sua vez são escritos por artistas ou intelectuais dotados a maior parte das vezes de autoconsciência crítica. Não há organicidade possível entre um produto cultural e a sociedade que o receberá quando qualquer impulso, mais ou menos criativo, mais ou menos comercial, passa primeiro por um amplo esquadrinhamento.

Sabemos, claro, que o processo de produção de um filme é coisa longa e demorada, mas este esquadrinhamento de que falo diz na verdade respeito a uma preocupação que contamina previamente o olhar dos cineastas, e não apenas a procedimentos de realização.

No funil que separa aqueles a quem será concedido o direito de filmar de forma minimamente profissional (ou seja, sendo remunerado, podendo pagar pelos equipamentos utilizados e não necessitando recorrer a favores de amigos) e o restante reside uma lógica que obriga que antes de serem cinema, os futuros filmes sejam projetos.


Ora, sabemos que a toda burocratização corresponde um engessamento progressivo. É isso: o cinema brasileiro está engessado. A “contrapartida social” foi incorporada ao inconsciente da classe artística e intelectual: para usufruir do dinheiro dos impostos dos cidadãos, para fazer jus ao dinheiro público investido, deve-se traduzir na obra um sentido qualquer de utilidade pública. A “utilidade pública”, quando pensada assim, nunca chegará perto de configurar um elo profundo entre uma obra e a sociedade, apenas poderá servir de trunfo para destacá-la na prateleira de uma biblioteca ou mediateca, ou para torná-la material de referência em salas de aula.


Mas é importante lembrar que não foi sempre assim: houve um dia em que boa parte dos cineastas no Brasil não eram egressos de cursos de cinema e não haviam sido formatados para pensar seu ofício a partir do escopo restrito do métier ou das formatações burocráticas das leis de incentivo. E é por isso que a mostra “Clássicos e Raros” me veio como um refresco, como a aula de história de que nunca podemos abrir mão e como inspiração para pensar o cinema do presente.

Nela foi possível tomar contato com filmes muito menos celebrados do que os atuais, mas muito mais significativos como produtos culturais do seu tempo. E foi assim que pude ver, entre outras preciosidades, o já citado Perfume de Gardênia, longa rodado em 1991, logo após o fechamento da Embrafilme. Ora, a satisfação de ver um filme como este não está no deleite com marcas estilísticas, com o trabalho pioneiro com os atores, nem com a sensibilidade do autor para tratar deste ou daquele tema, mas em perceber que a caracterização dos personagens e dos ambientes e o desenvolvimento do drama estão totalmente conectados ao imaginário compartilhado de seu tempo.

Os movimentos de câmera e os enquadramentos de Almeida Prado estão lá para atestar seu savoir-faire e talentos particulares, mas não são eles que dão vida ao filme. Ao assistir Perfume de Gardênia temos a compreensão perfeita da realidade que alimenta a construção da ficção cena a cena, e que faz avançar a trama. Não é necessário que a interpretação seja hiper-naturalista nem que o roteiro prescinda de viradas improváveis, pois a dimensão de representação encontra-se sob domínio completo do realizador e em consonância com o que o espectador médio compreendia como representação à época da realização do filme.


Cada vez mais se pensa e se estuda cinema no Brasil, mas cada vez menos se vê os filmes brasileiros não-contemporâneos, à exceção daqueles consagrados pelos “estudos de cinema”, justamente. Desta forma, seguiremos fazendo filmes ineptos para ganhar verdadeiramente o público (e com ele, o mercado), por serem estes desvinculados de um sistema de representação compartilhado, com o qual qualquer espectador pudesse se conectar, independentemente da classe social retratada.

Não seria este o motivo do sucesso inabalável das telenovelas no Brasil? (O desejo de forjar uma nação unificada teria incorporado desde o tempo dos militares o mote do amor pelo país – ainda que um país idealizado que pouco corresponda à multiplicidade e aos entraves do país real – para moldar ficções de fácil consumo que “vendessem” um determinado modelo de mundo.)

Colocando-se de lado qualquer valoramento estético, é fato que a teledramaturgia brasileira encontra-se conectada com o seu povo por um conjunto de referências comuns que lhe servem de base. Estas referências, naturalmente, vão desde gírias e costumes a padrões comportamentais e valores culturais que se reproduzem sem saber.

A partir do momento que a existência destas referências torna-se motivo de justificativa para a representação se dar, e não apenas sua conseqüência natural, a autoconsciência contamina o processo de tal forma que gera um entrave inevitável ao consumo trivial, não-alerta, do produto final.
Para que uma obra de impacto cultural assemelhado à de Warhol pudesse quem sabe um dia surgir aqui, é este consumo “cinematográfico” que se deveria fomentar no Brasil. Não o consumo especializado em centros culturais ou salas de aula, mas o consumo “de rua”, de esquina, de banca de jornal. Aquele que permite que se assimile e reproduza as referências “automaticamente”. Pois talvez com ele pudéssemos voltar a ter uma produção cinematográfica realizada verdadeiramente no espaço urbano, que captasse a circulação “suja” de pessoas, os marcos arquitetônicos do nosso tempo, os hábitos e trejeitos variados da população.

Que por sobre tudo isto imprimisse este ou aquele estilo (o traçado artístico), assim como a impostação de voz e o gestual trabalhados pelas técnicas atuais de interpretação. Para que daqui a trinta anos, os filmes de nossa época pudessem ser vistos como uma expressão geracional mais consistente do que um mero maneirismo difuso e massivo, estilhaçado entre mil imperativos – poucos (ou nenhum) dos quais de ordem verdadeiramente artística.

Revista de Cinema Contracampo / Setembro de 2010

http://contracampo.com.br/96/artduasoutres.htm

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